O poeta me ensinou pra que serve uma âncoraNeruda, a casa, o mar e meu eterno dilema: partir ou ficar?(Experimentando gravar o texto em áudio; perdão pela qualidade da narração!) Sempre achei que Isla Negra era o nome de uma cidade, e que era uma ilha de fato. Quando fui pesquisar como ir passar o dia lá, na minha última viagem ao Chile, descobri que não é nem uma coisa, nem outra. A tal “ilha negra” é uma área da costa de El Quisco, comuna chilena, que foi batizada assim por Pablo Neruda. Foi por causa dele, é claro, que fui até lá. Como tantos outros viajantes, fui visitar a terceira casa do poeta, sua preferida, e onde ele está enterrado. Eu já tinha conhecido as outras duas, em Santiago e em Valparaíso, anos atrás. Mas meu pai sempre me dizia: “você vai gostar mais da terceira. Impossível não se inspirar pra escrever naquele lugar”. Não sou uma grande fã de Neruda. Apenas gosto de muito do pouco que conheço da sua obra e sei que sua história envolve ações admiráveis enquanto diplomata e militante, mas também comportamentos bem questionáveis enquanto homem, como tantos outros artistas. Por isso, me surpreendi com o que aconteceu assim que guardei o mochilão no armário da casa-museu e cheguei na entrada da sala: de repente, meus olhos viraram mar. A emoção podia ser por estar passando o primeiro dia da viagem 100% sozinha, depois de um bom tempo acompanhada do meu pai e de pessoas lindas que conheci em Valparaíso. Naquela tarde chuvosa, enquanto as nuvens davam licença pra o sol, me veio a sensação gostosa de independência que aparece quando chego num lugar novo acompanhada só pelo meu mochilão. Mas cá entre nós, acho que foi a casa. Em meio a um silêncio imenso, graças à sorte de ser a única visitante naquele horário, meu corpo sabia que estava entrando num espaço quase sagrado: o espaço de criação de um artista. Naquele lugar, declarado Monumento Nacional, nasceram obras traduzidas mundo afora. E aquele homem, com todos os seus privilégios, pôde se permitir criar ali um templo à sua arte e à vida, nos seus termos. Neruda passou anos reformando a casa pra que ela não só tivesse espaços deliciosos pra inspirar sua escrita, como observou meu pai, mas também representasse seu gosto pelo oceano e por embarcações. É uma casa de corredores estreitos, tetos baixos, e, claro, janelas viradas pra o mar. Ele amava o universo náutico, mas navegar lhe dava enjoo (#tamojunto, Pablito). Fez da sua casa, então, um navio em terra firme. O poeta, conhecido colecionista, também encheu os ambientes com coisas que o divertiam ou traziam lembranças da infância. “Na minha casa tenho reunidos brinquedos pequenos e grandes, sem os quais não conseguiria viver”, disse. Entre móveis e objetos comuns, moram ali enormes esculturas de proas de navios, dezenas de garrafas coloridas, borboletas emolduradas, réplicas de barcos engarrafadas, centenas de conchas e um cavalo de madeira gigante que ele admirava quando menino. Foi ali que Neruda escreveu algumas das suas principais obras, amou sua última mulher, bebeu vinho com amigos no barco instalado no quintal e sofreu com o golpe militar. No laboratório de escrita de Taís Bravo, falamos sobre obsessões de escrita, e logo pensei no tempo em que eu só escrevia sobre o mar. Mas acho que nunca foi sobre as águas. O oceano me emprestou suas metáforas, que tanto usei pra tentar elaborar dualidades da minha vida adulta: partir versus ficar, desafios versus conforto. Talvez essa seja minha grande obsessão. Nos últimos anos, nos momentos em que me sentia mais confortável no meu cantinho, vez ou outra escutava: TXUF. O som de uma âncora afundando na areia. Será que tou me prendendo aqui? Enquanto construía um lar do meu jeito, primeiro no Recife e agora aqui no Rio, senti medo de me prender a uma vida limitada como a que vivia antes de começar a viajar, quando a ansiedade me obrigava a dizer tantos “nãos” pra o novo. Medo de entrar num modo automático do qual tanto me esforcei pra desviar. Também senti culpa por gastar dinheiro com móveis e decoração (“invista em experiências, e não em coisas”, me disseram) e por muitas vezes preferir minha rotina a viajar (mesmo sendo a melhor rotina que já tive). Pra quem acha absolutamente natural sonhar com a casa própria, com direito a airfryer, Alexa e robô aspirador, devo parecer ridícula. Mas pra quem enlaça a identidade ao movimento, é estranho encarar esse desejo de ficar. Dois pequenos grupos chegaram e saíram da casa de Isla Negra antes que eu fosse embora de lá. Percorri lentamente cada cômodo, acompanhada pela música do Pacífico de ondas fortes e um azul turquesa tão intenso que parecia artificial. E meus olhos molhados não desistiam de ser mar. Me emocionei com a audácia daquele homem de se nomear capitão de um barco que não saía do lugar. Com a ousadia de criar uma casa esquisita e enchê-la de objetos sem função concreta, como quem decreta que a vida é mesmo uma grande brincadeira. (Pensei também em como é fácil fazer isso quando se é um homem branco, famoso e com dinheiro, e me incomodou que a esposa não parecesse ter ali também o seu lugar, mas vamos deixar a problematização entre parênteses). Saindo da casa, me sentei no banco de pedra onde o poeta costumava ficar, em frente aos túmulos dele e de Matilde, e escutei das ondas: “você também pode criar seu próprio universo. Nele, suas escolhas não precisam seguir a lógica convencional. Quem disse que é preciso estar no mar pra navegar?”. TXUF: a âncora me prende ao chão. E lembro que posso puxá-la de volta quando desejar. De volta ao Rio, abri a porta do meu mini apê e vi as paredes que têm me ancorado. Que falam de quem sou, dos meus afetos, dos caminhos que percorri. E me lembram que posso viver aventuras, perto e longe daqui, com um lugar seguro pra voltar pra mim. “As coisas têm a tarefa de estabilizar a vida humana. (...) são a mesma cadeira e a mesma mesa que aguardam, com familiaridade permanente, os humanos que se modificam a cada dia” - Hanna Arendt, citada por Byung-chul Han em “O desaparecimento dos rituais”. Existem muitas formas de manter-se em movimento e poucas regras sobre como deve ser seu lar, me lembrou o capitão de um barco que não saía do lugar. (É proibido tirar fotos dentro da casa de Neruda, então espero que vocês tenham usado bem a imaginação, rs)
O que tem rolado por aquiEste mês o blog fez aniversário! Meu querido filhote completou 11 aninhos, é um pré-adolescente. Deixei de ter o Janelas Abertas como minha única fonte de renda e no momento não quero mais que o seja, mas ele continua sendo um projeto importante pra mim. Por isso, fico muito feliz sempre que vocês vão lá ler os textos (meus e das redatoras colaboradoras, que falam sempre de lugares onde estiveram). Nas últimas semanas, publiquei artigos sobre o que fazer e onde ficar em Bogotá, 10 cidades para ser nômade digital no Brasil e dicas de hospedagem no Atacama e em Serra Grande, na Bahia. Expliquei também como funciona a Liberfly, empresa brasileira que te permite ganhar até R$ 1 mil de indenização por problemas com companhias aéreas em até 48h – já usei e acho ótimo pra casos simples. Sem hipocrisia, também fico felizona quando vocês usam meus links de afiliada e me garantem umas comissões pra manter meu trabalho de produção de conteúdo gratuito. :) Pra quem não sabe: quando for fazer uma reserva de hospedagem em qualquer lugar do mundo, se você usar este meu link do site Booking.com eu ganho um percentual do valor que as hospedagens repassam ao site e você não paga nada a mais por isso. Também recebo uns trocados pelas reservas de seguro-viagem feitas com o meu link da Seguros Promo, que compara os planos das melhores empresas do mercado (e vocês ganham 15% de desconto clicando no link), e por cada plano da Worldpackers que vocês assinarem por esse link aqui (com 20% de desconto!). Agradeço demais! Abri minhas janelas e vi“Conheça os nômades digitais. Eles trazem às cidades espaços de trabalho luxuosos, cafés sofisticados… e preços de aluguéis cada vez mais altos”, diz a introdução dessa matéria (em inglês) sobre como o nomadismo digital tem expulsado os moradores originais de vários lugares. Vale a leitura! Uma pesquisa mencionada na reportagem acima indica (não surpreendentemente) que a maioria dos nômades digitais são brancos e ocidentais. Outro estudo sobre o tema, que deu origem a essa matéria (em bom português) do site Guia Negro, detalha essa questão da raça: de acordo com a pesquisa, 70% dos nômades digitais são brancos. Se você curte o podcast Bom dia, Obvious, apresentado por Marcela Ceribelli, certamente vai gostar do livro que ela escreveu. "Aurora: o despertar da mulher exausta" é uma espécie de resumo dos melhores episódios do podcast. Ela mistura relatos pessoais, estudos científicos e falas de entrevistados pra falar sobre as expectativas que recaem sobre nós mulheres em várias áreas da vida. Por hoje é só 🧡 Obrigada a quem leu até aqui, e boas viagens pra dentro por aí. Beijo, Luísa Curtiu esta newsletter? Compartilhe-a com alguém que pode gostar também🧡 |
quinta-feira, 20 de julho de 2023
O poeta me ensinou pra que serve uma âncora
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