Nasci em Porto Alegre e foi aqui que vivi minha vida toda. Essa cidade tem um muro. O muro da Mauá. Ele foi construído pois em 1941 rolou uma cheia na cidade e a água inundou 15 mil casas e deixou 70 mil pessoas desabrigadas. Foi um caos total. Vivi minha vida ouvindo a história dessa tragédia que parecia que nunca ia se repetir. Mas obviamente se repetiu. Falo “obviamente” porque a humanidade é, em sua grande maioria, péssima em aprender lições. Soma-se a isso um tempo de calmaria para nos transformar em seres relapsos, arrogantes, pessoas que acham que algo nunca vai acontecer conosco, na nossa vez. Era óbvio que aconteceria, e, vejam só, aconteceu bem na nossa vez. Vocês já devem ter visto muitas matérias sobre o que aconteceu, os motivos da tragédia, os números inacreditáveis e mais uma pá de histórias chocantes e inimagináveis. Mas eu queria trazer um pouco do que foram as minhas últimas semanas com o objetivo de mostrar como é a rotina em uma calamidade. Mostrar como as pessoas comuns, como eu e todas que encontrei nesse caminho, se organizaram para dar conta de uma parada incontornável que poderia ter sido melhor resolvida com um poder público mais atuante. Mostrar como a vida se desenrola. No fim quero apenas registrar o que foram esses dias. Seja por mim, para poder revisitar isso no futuro, seja por vocês, que poderiam ter essa curiosidade, seja para alertar, reforçar, marcar. Como diria minha amiga Gabi Teló em seu bonito relato, quero escrever para “que a gente não permita que tudo isso se repita“. Junto da normalidade estava também a apreensão. A gente sabia que a água ia chegar em Porto Alegre, mas em nenhum momento a prefeitura, nem ninguém, alertou para o que realmente aconteceria. Assim como a cheia de setembro do ano passado, o ambiente aqui, pelo que eu percebia, era de “o rio vai subir e alagar a orla nova, mas o muro deve segurar”. Estava todo mundo em choque com o interior do estado, mas a capital seguia sua rotina. A única diferença que eu percebia era aquele velho medo pandêmico: pessoas esgotando estoques de papel higiênico e água. Como eu moro em um bairro onde a água não chegou perto em nenhum momento, ao meu redor tudo era como sempre fora. O que eu sabia chegava pela imprensa e redes sociais. A água foi invadindo Porto Alegre, mas dentro da minha rede de contatos a coisa não parecia tão séria. Eram fotos do centro já com água, alguns outros pontos da cidade famosos com água, mas nenhuma imagem passava o tamanho do que estava acontecendo. Nessa hora já haviam diversos bairros imersos e com a água avançando. No final de semana as coisas mudaram um pouco. Começaram a surgir pontos de doação para desabrigados por toda a cidade. O colégio em que a Mari trabalha virou um ponto de doações também. Diversas famílias de alunos e alunas chegavam com sacolas de roupas, toalhas, kits de higiene, roupas de cama, essas coisas. Eu fui junto ajudar ela e a equipe do colégio a organizar as doações. Entre cada leva de roupas catalogada, uma olhada no celular, uma atualizada de feed, um giro pelos grupos de WhastsApp. Organiza mais roupas. Olha no celular e descobre que o Guaíba está em 4 metros. Organiza mais roupas. Começa a entrar água no bairro X. O Y já tem gente evacuando. Foca, organiza mais roupas. Guaíba em 4,5 metros. O meu cunhado e um grupo de amigos se organizaram e, através de doações, compraram barcos para resgatar pessoas que estavam em suas casas mas não conseguiam sair por causa da altura da água. Ele queria uma jardineira para entrar com mais segurança na água, e depois que eu postei no Instagram perguntando se alguém tinha para emprestar, consegui duas, que fomos buscar e depois levar para ele. Cheguei onde eles estavam e uma rua que eu passava toda semana para jogar futebol estava coberta d’água. A ficha caiu. A água foi invadindo bairros próximos do rio, trazendo sua margem para dentro da cidade. E onde essa margem acabava e virava asfalto, grupos de pessoas formavam “cais”: lugares onde podiam colocar barcos na água e trazer pessoas em segurança para terra firme. Isso não aconteceu em uma ou duas ruas. Isso aconteceu em dezenas delas. Toda rua que desembocava na água era um potencial cais improvisado, e que se movia lentamente para trás à medida em que a água subia. No fim eu consegui duas jardineiras emprestadas e fiquei com uma para mim. No “cais” da rua ao lado de onde estava meu cunhado estava um amigo meu que havia pegado uma caminhonete L200 e estava entrando na água para resgatar pessoas e animais. Como eu tinha uma roupa apropriada, entrei na caminhonete para ajudar nos resgates também. Andamos pelas Farrapos, uma grande avenida da cidade com água na altura da janela do carro. Uma pessoa passou por nós levando uma geladeira boiando ao seu lado. Alguém de jet-ski dobra em uma rua. Pessoas nas janelas faziam um sinal de positivo quando a gente gritava perguntando se estava tudo bem. Elas queriam ficar em suas casas, mesmo sem ter luz ou água. Talvez por medo de saques, talvez por medo de como seria o abrigo para onde seriam levadas. A cena lembrava Walking Dead e The Last Of Us, mas em um cenário conhecido. O karaokê que muito já fui cantar. A sede de um antigo cliente. A quadra de futebol que muito já joguei. Tudo embaixo d’água. Antes de um barco ou caminhonete entrar na água, alguém indicava um endereço onde uma pessoa havia pedido resgate. Isso era incrível: pessoas ficavam nesses embarcadouros somente listando pedidos de resgate, organizando os barcos e carros para dar conta da demanda. Outras pessoas traziam roupas secas e comida para os desabrigados que desembarcavam ali. Por fim, alguém organiza caronas para levar essas pessoas para abrigos em outras regiões da cidade. Então o nosso destino era sabido. Nós estávamos indo resgatar uma senhora idosa e sua filha cadeirante (e mais o cachorrinho da família que esqueci o nome, mas acho que era Feijão). Depois que trouxemos elas em segurança, saímos para resgatar mais pessoas e animais. Em um momento, paramos em outro “cais” quadras para o lado, e ainda na caçamba da caminhonete me vieram oferecer água, café e sanduíches. Eram moradoras, ajudando como podiam quem estava no resgate. Incrível demais. Nos dias seguintes, já haviam pessoas nos carros e barcos, então fiquei apoiando no solo, tirando pessoas dos barcos, carregando pertences e animais de pessoas cansadas que vinham de longe caminhando pela água. Ainda ajudei uma família a tirar alimentos que venceriam da sua loja de empadas. O meu trabalho mesmo eu fazia à noite e em raros momentos de calmaria direto no WhatsApp mesmo. Durante o dia o senso de urgência nos impedia de pensar direito. Toda hora havia alguém precisando de algo. Comida, roupas, barco, carona, gerador, colchão, ração. A rotina era uma grande emergência e uma das coisas que eu fiz muito foi passar contato de pessoas para outras pessoas pelo Whats. Muitas eu nem conhecia. “Lu, sabe de alguém com carro que pode ir em tal lugar? Sim. Fala com essa pessoa aqui.” Olhar o celular era descobrir uma demanda nova, e isso cansava muito. Esses grupos passaram dias tirando pessoas da água, e como eu tinha que voltar para o meu trabalho, tive que conciliar outra forma de unir o voluntariado na minha rotina. Passei a ajudar um grupo de amigas que também se organizaram para arrecadar dinheiro e fazer compras para abrigos periféricos com menos visibilidade. Ajudei elas fazendo cobertores, levando marmitas, água, produtos de limpeza e pallets para abrigos da cidade. Vários grupos de Whats ajudavam as pessoas a saber onde haviam marmitas, quem precisava de roupas, qual abrigo carecia de voluntários. Ao mesmo tempo, com outro grupo de amigos, mobilizamos pessoas, em especial de São Paulo, para doarem para o RS. Arrecadamos pouco mais de 93 mil reais que destinamos para compra de 20 mil litros de água, confecção de marmitas em restaurantes de POA, cobertores, colchões e repasses para ONGs e entidades de confiança. E falando em restaurantes, isso é algo interessante de pontuar: por quase todos os restaurantes que eu passei a cozinha até estava aberta, mas o foco era fazer marmita para abrigos. Eles recebiam doações (de dinheiro e insumos) e usavam suas estruturas para fazer comida para as pessoas que haviam perdido suas casas e estavam em abrigos improvisados (e obviamente sem estrutura de alimentação). Isso foi muito foda. Admiro muito mais restaurantes que já admirava. Ainda como forma de ajuda, fui voluntário ajudando a colocar no ar o Contrate RS, uma plataforma/vitrine que conecta profissionais independentes e empresas da indústria criativa e cultural a contratantes de fora do estado que podem proporcionar oportunidades a esses talentos, estimulando a economia gaúcha e ajudando na retomada pós-enchentes. Todo mundo que conheço aqui do RS tinha alguém da sua rede próxima com a casa ou empresa embaixo d’água. Ou seja, todo mundo que estava nas diferentes linhas de frente tinha esse peso emocional nas costas. Soma-se a isso o fato de quase todo mundo estar fazendo algo para que não foi preparado, nem tecnicamente e nem mentalmente. Fomos colocados, de uma hora para outra, em cenários totalmente fora da realidade e sem o apoio necessário. Muitos já estavam sem casa, outros voltavam para casa e não tinham luz ou água depois de um dia desgastante. E se olhassem o celular a ansiedade apenas crescia, como falei antes. Vivi uma semana com um alarme de emergência ligado dentro da cabeça. Com o tempo, à medida que as pessoas estavam seguras e a água começou a descer, a urgência foi finalmente desaparecendo. E o que surgiu no lugar dela foi a raiva. A raiva de não ver os órgãos responsáveis ajudando de uma forma mais competente. A raiva pela demora em chamar ajuda de outros estados. A raiva de descobrir que já haviam notificado os últimos dois prefeitos sobre problemas no sistema de proteção e nada foi feito. A raiva de não haver plano de evacuação antes da água chegar. A raiva de não liberarem passe livre para as pessoas saírem das zonas de risco. A raiva de ouvir o governador e prefeito justificarem o injustificável. A raiva de ver uma calamidade evitável destruindo vidas aos milhares. Trouxe fotos aqui pela primeira vez, pois essa história precisava de imagens. Acho que nenhuma palavra minha teria a força de superar a bizarrice que meus olhos e câmera viram nos últimos dias. E quando vi um sofá jogado na calçada no centro da cidade, de uma pessoa que deve ter perdido muito, fiquei pensando o que que o prefeito e uma elite específica da cidade querem dizer quando chamam Porto Alegre de Capital da Inovação. Uma administração que faz de tudo, menos fazer as coisas de uma forma inovadora. Sucateou o orçamento participativo, trabalha pelo interesse das grandes empresas e menospreza o seu poder como garantidor de salvaguardas básicas para a vida. Peguei um spray e joguei essa ideia no sofá. Gostaria de pensar que coisas assim não acontecerão de novo, mas a raiva do momento me diz que vai acontecer. Então é hora de trabalhar para diminuir essa possibilidade. É o meu foco no momento.
Oie. Meu nome é Luciano Braga. Sou realizador de diversos projetos criativos nas áreas da comunicação, comédia, ficção e impacto social. Boto minha energia em iniciativas que desafiam minha criatividade, que empoderam pessoas e que deixam um legado positivo no mundo. Quer me conhecer? Vem no meu Instagram. |
sexta-feira, 31 de maio de 2024
Links do mês #098 e a vida durante uma calamidade
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