Sangrar, em sentido literal, é verter ou fazer verter sangue, mas, em sentido político, significa sofrer ou fazer sofrer desgaste.
Desde que o PSDB do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso preferiu "deixar Lula sangrar no cargo" de presidente, em vez de pedir seu impeachment em 2005, na esteira do mensalão, o jargão se popularizou no Brasil. Não faltaram, por exemplo, parlamentares interessados em "deixar Dilmar sangrar" em 2015 e 2016, mas a crítica de que a omissão tucana na década anterior levou Lula a obter o segundo mandato pesou a favor do impeachment de sua sucessora, na esteira das fraudes fiscais.
Desde o fiasco no primeiro debate de 2024 com Donald Trump, em 27 de junho, Joe Biden 'sangrou' no debate público e na corrida eleitoral em razão de suas dificuldades de memória, raciocínio e locomoção, decorrentes de uma senilidade acobertada pela cúpula do Partido Democrata e até então pela imprensa amiga, que, apesar dos lapsos frequentes nos meses anteriores, exaltavam sua condição, considerando-o "afiado como uma tachinha".
O Antagonista expôs a realidade, como sempre.
"Isso é um trunfo muito grande para Donald Trump, que sempre soube explorar as questões de energia – para lembrar o caso de Jeb Bush nas primárias republicanas de 2016 – dos seus adversários. Ele não tem o menor pudor em falar sobre questões pessoais, físicas, de capacidade, de articulação, de fala. O Trump vai e aponta. E o Biden está dando substância, está dando margem para isso. São várias e várias gafes que ele comete, discursos em que ele gagueja e perde o raciocínio, em que 'dá branco' e ele não sabe exatamente onde estava. Até com o Lula houve aquele constrangimento, de que o Lula foi cumprimentar e ele virou distraído. Então esse lado que o Trump aponta, de alguém que não tem mais energia, que já está gagá, e que os republicanos exploram, pode pesar, de fato, contra o Biden", antecipei em 16 de janeiro no Papo Antagonista, 6 meses e 5 dias antes da desistência; 5 meses e 11 dias antes do debate.
A senilidade pesou, claro, porque, para qualquer mortal, ela não é algo que dá e passa. Sua tendência é agravar-se com o tempo, dificultando ainda mais realizações de tarefas cotidianas, que dirá eleitorais e presidenciais. Como se não bastasse o noticiário ter girado em torno da saúde de Biden nas semanas subsequentes ao debate, bem como da manutenção ou não de sua candidatura, com pedidos agora explícitos de jornais, revistas e artistas para que ele desistisse, seu adversário foi alvo de atentado apenas 16 dias depois, em 13 de julho, levando um tiro de raspão na orelha.
O disparo de AR-15 feito por Thomas Crooks fez Trump literalmente sangrar em praça pública, no alto de um palanque no condado de Butler, na Pensilvânia, e o sangue logo escorreu em seu rosto e sua mão, eternizando algumas das imagens mais marcantes das eleições americanas em todos os tempos – até porque o ex-presidente, cercado por seguranças, ainda ergueu o punho e gritou "Fight!" ("Lutem!").
A despeito das críticas, entre outras condutas, à sua recusa de aceitar o resultado das urnas em 2020, ao seu estímulo à insurreição de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio, sede do Congresso americano, à sua condenação criminal no caso da falsificação de documentos para encobrir a compra de silêncio de uma ex-atriz pornô, Trump se tornou vítima real de uma tentativa filmada de assassinato em plena campanha, um ataque à democracia mais nítido que alegações sobre a ameaça representada pelo candidato.
"Como você fala sobre a ameaça à democracia, que é real, quando um presidente diz coisas como ele [Trump] diz? Você simplesmente não diz nada porque isso pode incitar alguém?", questionou Biden no dia 15, evidenciando a dificuldade da campanha para manter o mote.
Do ponto de vista do marketing, a equipe do atual presidente passou a enfrentar o pior cenário possível: o noticiário dividido entre as investigações do atentado a Trump, que repercutem positivamente para ele, e as dúvidas sobre a candidatura do Partido Democrata, que repercutem mal para Biden.
Foram 8 dias de um contraste devastador, sem prazo para terminar. O sangue de Trump energizou sua candidatura, enquanto Biden "sangrava" em sentido contrário, com sua campanha nas cordas. A única forma de (tentar) estancar essa sangria dupla era criar um fato novo, capaz de mudar o rumo de, pelo menos, metade do noticiário e de levar o debate público em outra direção.
Anunciada neste domingo, 21 de julho, a desistência atrasada de Biden, seguida de seu apoio à vice Kamala Harris, da intenção manifestada por ela de merecer e conquistar essa nomeação e, claro, das declarações de correligionários articuladores como Barack Obama sobre o patriotismo do presidente, deve render a repetição desses elogios na imprensa, que também se atrasou em sua cobertura, e um pouco de mistério que mantenha as notícias focadas na reviravolta do partido.
Nada há de brilhante ou patriótico nisso tudo. Depois do negacionismo e do choque de realidade, era apenas o que dava para fazer. |
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