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É com um pé em Portugal e outro no Brasil (e no mundo!), de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar esta newsletter. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura. ____ Porchat e a cultura do dedo na caraÀs 21h30 de um começo de fevereiro, a fila em frente ao teatro dobrava o quarteirão. Fazia 8ºC em Aveiro, no norte de Portugal, onde, dali a pouco, o humorista Fábio Porchat daria início a seu novo show - um monólogo sobre impressões de suas viagens pelo mundo. Até o final da temporada lusa, 18 mil pessoas, que terão pago 25 euros por cabeça, vão ter se esborrachado de rir com os disparates do comediante. O mesmo espetáculo estreia no Brasil em abril. Porchat é famoso em Portugal sobretudo pelos quadros do "Porta dos Fundos", o mais bem-sucedido canal de humor do país, do qual é co-idealizador, roteirista e ator. A fama além-mar lhe rendeu um contrato para apresentar uma série a ser exibida pela emissora pública RTP, baseada no livro "Viagem a Portugal", de José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. O humorista está percorrendo aldeias no interior, refazendo os passos do escritor, encontrando-se com pessoas que estiveram com ele, petiscando iguarias citadas no livro. Como passaria quase um mês viajando pelo país, contactou um produtor local para que encaixasse a turnê nos intervalos das gravações. No camarim do teatro, Porchat falava sobre a cultura do cancelamento e o humor. "É mais difícil fazer humor hoje do que há 10 anos", disse. "A tensão e atenção estão maiores, as pessoas estão mais sensíveis e, com razão, passaram a reclamar das piadas preconceituosas." Nos Estados Unidos, as piadas transfóbicas de David Chapelle provocaram demissões e afastamentos na Netflix. No Reino Unido, o comediante Jimmy Carr fez um chiste sobre "o lado bom" do Holocausto, que o colocou na prateleira dos agourentos. "Uma piada pinçada de um contexto para ser publicada num jornal perde o seu significado", disse. Para ele, é evidente que Carr não defendia a matança de judeus e é preciso entender o "pacto" existente entre o humorista que está no palco e o público que pagou para ouvi-lo. "É certo que a piada mudou", disse. E lembrou-se de algumas que costumava contar não faz muito tempo - sobre loiras, gays, negros - fazendo a família, os amigos, o público morrer de rir. "Os brancos, os não-gays, claro." Para ele, foi bom que esse tipo de anedota tenha caído em desuso "porque já deu". Falou-se sobre outros comediantes estrangeiros - Larry David, Ricky Gervais -, cujo repertório toca em temas melindrosos e cujas carreiras permanecem inabaladas. "São muito criticados, mas estão estabelecidos e o público deles espera exatamente o que eles entregam." O efeito da iminência de um cancelamento era visível na comédia. "Está todo mundo pisando ovos com o humor", disse. Os filmes e as séries televisivas do gênero, por exemplo, haviam se tornado "mais bobas, mais ingênuas". "Se alguém quiser falar de racismo, hoje não vai fazer numa comédia, vai fazer num drama." Perguntei se ele tinha medo de ser cancelado. "Alguma hora, todos nós vamos ser cancelados", respondeu. Segundo ele, há um clima de dedo na cara do outro, uma avidez de acusação. "Há 200 anos, as pessoas iam aos enforcamentos públicos com os filhos. O ser humano gosta de ver as pessoas queimando na fogueira, ver o outro se dar mal", afirmou. "A cultura do cancelamento também é isso: o exercício do pequeno poder de pequenas pessoas, que querem mostrar que podem acabar com a sua vida." E citou o influenciador digital Carlinhos Maia (22 milhões de seguidores na internet), que diz não ser cancelado porque "quem me cancela não me consome", como um bom exemplo de atitude mental em tempos de inquisição. "Se uma pessoa fala que o nazismo é bom, ela não tem que ser cancelada, ela tem que ser criminalizada, presa." Com as barbas de molho, Porchat montou um espetáculo apolítico. Não há piadas de português (que era 90% do público). Nem de loira, nem de gays, nem negros. Quis saber se a atual conjuntura política brasileira não era uma boa inspiração. "Esse governo é todo risível, mas como estamos no meio do drama é difícil rir. No ano que vem, quando ele tiver saído, estiver preso, aí vamos poder rir com vontade", afirmou. Porchat segue com lupa as redes sociais dos bolsonaristas. Lê tudo postado por Mário Frias, Damares Alves, pelas deputadas Bia Kicis, Carla Zambelli, pelos filhos do presidente. "É muito interessante até do ponto de vista antropológico: eles vivem em um mundo paralelo, ficam o tempo todo se adulando, acreditam que são incríveis, acham que tudo que fazem é bom, que cada um deles é especial", disse. Arrisquei uma piada perguntando se ele falava da esquerda. Ele não riu. Antes da morte do grupo no WhatsApp, desligou-se do Coala, a que os críticos se referiam como "grupo da esquerda festiva"- que tinha, até pouco tempo, integrantes como Felipe Neto, Paula Lavigne, Guilherme Boulos, Fernanda Lima e Marcelo Adnet. Além da chateação de ter o celular apitando dezenas de vezes por dia devido à alta postagem do grupo, ele sentia que as águas não estavam mais navegáveis para ele. "Ali, se você fala uma coisinha um pouquinho diferente do resto, pumba! Já vem a bomba." Ele tirou o casaco de inverno, abanou-se e continuou. "Sempre achei o Bolsonaro uma escória, mas também sou muito crítico ao PT. Eu falo: 'Gente, não podemos ficar cegos sobre a corrupção que houve, o mensalão, os tesoureiros do PT que foram presos'. E a resposta é sempre: 'Ah, mas é tudo mentira da imprensa, o PT fez um monte de coisas boas, etc'." Ele adquiriu um tom teatral e falou mais alto do que o normal: "E aí, menina, eu tô no limbo! Ninguém sabe me classificar! Eu não sou Lula e não sou Bolsonaro. Eu sou o quê então, não é?". Em algum momento, um jornal publicou que ele apoiava Sergio Moro. "E foi logo quando eu já declarei meu voto no Ciro Gomes para parar com qualquer especulação." Também o incomodava uma certa superioridade moral, um discurso de "não pode isso, não pode aquilo", muito presente ultimamente. Deu o exemplo retórico de uma piada com uma criança morta. "Aí, na hora já vem um apontar o dedo e dizer: 'Não pode fazer piada com isso!' E eu digo: Pode sim! É horrível? É. É de mau gosto? É. Eu faria? Não. Mas po-de!", disse, reforçando a separação de sílabas. "A gente tem que ter muito cuidado com esse 'não pode'. Não pode se for proibido pela Constituição. Se for crime, não pode. O resto po-de!". Com vinte minutos de atraso, Porchat entrou no palco do teatro lotado. Durante uma hora, falou sem parar, moveu-se ora como uma gazela, ora como um rinoceronte, imitou vozes, fez poses, gritou, sussurrou, pulou, fez toda sorte de macaquices, nem sequer bebeu água. Houve piadas adaptadas ao público local, referências a subcelebridades canarinhas que tive dúvidas se faziam sentido para a audiência aveirense, palavrões pronunciados com vagar, comentários autodepreciativos, pilhérias mil sobre a brasileirada. Entretanto, nada mexeu tanto com a plateia quanto a longa preleção sobre uma diarreia. Quando terminou, foi aplaudido de pé. Risco de cancelamento: zero. Era quase meia-noite e a equipe ainda pegaria duas horas e meia de estrada até Lisboa. No dia seguinte, partiria cedo para Évora para gravar mais um episódio da série baseada no livro de Saramago. O pai do humorista, que é seu homônimo, caminhava orgulhoso pelos corredores dos camarins. Disse que havia gostado, que ainda ria das piadas que ouvira várias vezes e que não se surpreendia com o talento do filho. "Ele sempre foi assim, sempre gostou de aparecer." ______ | O jornalista ucraniano Oleksandr Akymenko | Imagem: Arte/UOL |
Q&A: 'Que ele queime no inferno'
Cinco horas depois do primeiro bombardeio russo à Ucrânia, na madrugada de quinta-feira (24), conversei com meu amigo, o jornalista Oleksandr Akymenko, fundador da Yes&Design, uma das vozes mais conhecidas da nova geração de inovadores digitais no país. Ele estava em casa, em Kiev, com a mulher, o filho de 5 anos, a sogra e amigos que resolveram "se juntar nesse momento". Daniela Pinheiro: Como vocês estão lidando com isso? Oleksandr Akymenko: Acordamos às 5 da manhã ao som de foguetes. Vimos depois que era um míssil russo que foi abatido pela nossa força militar a menos de 3 quilômetros da nossa casa. Estamos bem, estocamos água e comida, só por precaução. Saí para ver como estava a rua, há filas nos postos de gasolina, nos bancos, o comércio está funcionando normalmente e acho que assim vai continuar. O difícil é explicar para o meu filho o que está acontecendo. Que aqueles barulhos de explosões não são do desenho animado. Qual é o maior medo quando se está na iminência de uma guerra? De morrer, de perder tudo? Eu não tenho medo de nada, de verdade. Não me importo em perder nada. Tenho medo é de perder o país. Levamos 30 anos para reconstruir essa nação depois da União Soviética. Esse é um país grande e potente. Isso tem apenas horas e 40 pessoas já morreram, dentre elas, dez civis, inclusive uma criança. É um criminoso de guerra. Louco, ditador, fascista. Você pensou em deixar o país? Pensamos, mas sair é uma situação complicada. Primeiro, porque é como se você estivesse traindo tudo em que acredita, e também como se estivesse desistindo. E não vou ser eu a desistir quando o país inteiro vai resistir a isso com todas as forças. Queime no inferno, é isso que eu quero dizer a Putin. Esse país inteiro o odeia. Não vai ser fácil tomar aqui de assalto, não. Nosso povo está disposto a qualquer coisa. Nossos militares são competentes e experientes. Já viveram isso em 2014, quando ele tomou a Crimeia. Acabei de ver que do nosso lado já abateram e destruíram tanques, helicópteros e aviões russos. Não vai ser fácil, estou dizendo. A resistência vai ser poderosa. Aqui não é Donbass [região no leste da Ucrânia invadida por Putin na semana passada]. | José Bouza Serrano, embaixador português e estudioso das monarquias | Imagem: Divulgação |
Estudioso figadal das monarquias do presente e do passado, ferrenho defensor das casas reais, o embaixador português aposentado José Bouza Serrano assistiu aterrorizado pela televisão às cenas da tragédia em Petrópolis (RJ). Surpreendeu-se com o fato de o laudêmio ainda existir na antiga colônia, mas reforçou a importância do imposto como direito adquirido imprescindível para a manutenção da monarquia. "A terra pertencia à família dos herdeiros. Ninguém está fazendo nada errado", comentou. Em Portugal, a enfiteuse (o equivalente luso ao "imposto do príncipe") foi extinta. Não precisava, segundo ele. "Aqui, temos oito séculos de monarquia e só 100 e tantos anos de República. Os reis de Portugal fizeram mais por nós que os presidentes", afirmou. Lembrou-se de que a cobrança de taxas para a realeza é clichê. Dá-se mundo afora, no centro de Londres, onde ainda há terrenos que pertencem ao Marquês de Westminster e, portanto, qualquer transação imobiliária na região rende uns trocados à família do nobre. Também com a princesa Beatriz da Holanda, beneficiada igualmente por negócios feitos em Nova York, já que muitas propriedades datam da colonização holandesa. "O dinheiro da rainha da Inglaterra vem do ducado de Lancaster. O do príncipe de Gales, do da Cornualha", explicou o embaixador. "Quando a Lady Di se separou de Charles, quem você acha que pagou a indenização de 14 milhões de libras? Não foi a rainha que emprestou dinheiro. Foram os banqueiros da Cornualha que fizeram um empréstimo ao príncipe, baseado nos bens dele. E agora não sei como vai ser com o príncipe Andrew [filho de Elizabeth 2ª, membro da família real britânica, acusado de agressão sexual contra uma adolescente]. Porque ele não tem nada!", disse, em gargalhada. Quando comentei que a família real brasileira não havia oferecido ajuda financeira aos moradores da cidade que a sustenta, ele estranhou. "Eles têm direito adquirido, mas acredito que não vão querer esse benefício em meio a um drama desses, com mortes, tudo destruído. Não vão dizer: 'Ai, meu laudêmio!', não é?". Bouza discorda da pecha de parasitas dadas aos monarcas. "Eles passam o tempo cuidando de seus bens. Isso já é muito trabalho. Banqueiros só administram as coisas, emprestam dinheiro, não produzem nada e ninguém acha estranho", disse. Ele lembrou que alguns deles têm até profissão. "O Dom Joãozinho, por exemplo, é fotógrafo." Mencionei outro monarca com emprego, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, do PSL, trineto da Princesa Isabel, escudeiro de Bolsonaro. "É natural que os monarquistas fiquem na parte mais conservadora, mais reacionária da sociedade. Mas, apoiar Bolsonaro, ó Deus! Tudo tem limite", disse, horrorizado. | Dom Duarte Pio de Bragança, na Fundação Dom Manoel II, em Lisboa | Imagem: Luciana Alvarez/UOL |
O 'imposto do príncipe' em Lisboa
Em maio de 2020, Dom Duarte Pio de Bragança, chefe da "Casa Real Portuguesa", pentaneto de Dom João 6º, Duque de Bragança, Sua Alteza Sereníssima Ducal - como é por vezes chamado - revelou ao jornal Fama ao Minuto como a realeza portuguesa pagava suas contas. Contou viver de alguns aluguéis em Lisboa (cortesia da Rainha Dona Amélia), de projetos tocados no cargo que ele mesmo nomeou em uma fundação e também de uma boquinha vinda dos primos do Brasil. "Todo o território onde está construído Petrópolis é propriedade da minha família materna e daí recebemos também um rendimento. O imperador D. Pedro 2º, bisavô da minha mãe, comprou aquela fazenda e construiu lá a sua casa de verão. Muita gente foi viver para lá e queria comprar terrenos. Ele não vendeu nada, mas cedeu os terrenos em troca do pagamento de uma pequena percentagem de 2,5% sobre futuras vendas de casas e isso vigora até hoje", afirmou. |
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