Poucas são as situações mais potentes do que um encontro de mulheres. Quando se trata de mulheres que, vivendo em diversas partes do país, em diferentes condições, se dedicam objetivamente a transformar a vida de suas comunidades, aí o poder é avassalador. Foi essa a tônica da noite da última terça (20) na Casa Natura Musical, em São Paulo. Estavam reunidas ali as finalistas do Prêmio Inspiradoras 2022, parceria de Universa e Instituto Avon. O motivo principal do evento era anunciar o nome das vencedoras, mas a festa foi muito além. Ou, como diz a vencedora da categoria Conscientização e acolhimento, Anne Cleyanne, foi um banzeiro, que é "quando o rio faz um movimento forte e tira a lama, e tira as árvores da beira do rio. Isso gera vida, nutre, leva para o resto do bioma da Amazônia". Quem desencadeou esse movimento foi Paola Carosella, a mestre de cerimônias. Logo no início da noite, pediu à produção que parasse o teleprompter. Seguiu, então, um relato solo sobre sua paixão pelo país. "São as pessoas que eu amo do Brasil, são essas [as razões] pelas quais eu escolhi fazer parte desse país com um orgulho e amor tão grande que vocês não fazem ideia. [...] Eu amo esse país pra caramba!". O Prêmio teve ainda a participação das convidadas ilustres: Negra Li, Monica Iozzi e Sabrina Parlatore. Paula Lima embalou a noite com direito a uma música inédita, "Deixa eu dizer", escrita para ela por ninguém menos que Emicida. E a escritora Liana Ferraz fez intervenções declamando trechos de seus poemas. No fim da noite, a revelação da grande surpresa: Anielle Franco, fundadora do instituto que leva o nome de sua irmã, Marielle Franco, foi a grande homenageada por seu trabalho em defesa da democracia. Confira a seguir alguns dos momentos mais emocionantes da noite: Paola Carosella: "Escolhi fazer parte desse país com um orgulho e amor tão grande que vocês não fazem ideia" | Paola Carosella apresentou o Prêmio Inspiradoras 2022 | Imagem: Mariana Pekin/do UOL |
Paola Carosella abriu sua fala espontânea compartilhando seu olhar sobre as mulheres brasileiras que conheceu e conhece em suas andanças por todos os cantos do país. "Quando eu vejo esse Brasil, o que eu vejo são mulheres, mulheres que vão contra tudo, contra todos os ventos, maré contra e vão construindo e vão formando laços, conexões e vão, com o pouco poder que elas têm (...) E, se existe uma força nesses lugares e se existe uma resistência muito grande, essa resistência, ao meu ver, vem das mulheres. Mulheres que estão aqui, mas também as mulheres invisíveis, as que acordam às 4h da manhã e que pegam três horas de ônibus para fazer faxina casa de alguém para depois ir num outro lugar, para depois sustentar os filhos, para depois voltar para casa e fazer faxina em casa, continuar cuidando dos filhos, tentar comprar um arroz e um feijão e sobreviver, quando, na verdade, deveriam brilhar e viver. E o fazem com um sorriso que eu ainda não entendo, com uma resiliência que eu ainda não entendo." Paola também contou por qual motivo decidiu se naturalizar brasileira. "O que fez com que eu me naturalizasse brasileira foi entender que, para mim, o patriotismo é amar o espaço onde a gente está e não ver limites (...) Esse é o Brasil que eu amo e é por isso que estou aqui. Para mim não importa se é aqui ou em outro lugar, são pessoas em volta e são essas pessoas que eu amo do Brasil, e são essas pelas quais eu escolhi fazer parte desse país com um orgulho e amor tão grande que vocês não fazem ideia. Nem se a minha mãe tivesse tido 40 mil horas de parto eu teria nascido mais brasileira do que eu nasci aqui. Porque eu escolhi estar aqui. Eu amo esse país pra caramba. Que tenham escolhido essa pessoa, com esse sotaque, para fazer parte desse prêmio tão importante, para essas mulheres brasileiras tão geniais, acho que é um dos melhores momentos de 2022 para mim. Muito obrigada! Negra Li canta Nina Simone: "As mulheres que me inspiram são as mulheres livres" | Negra Li cantou Nina Simone no Prêmio Inspiradoras 2022 | Imagem: Mariana Pekin |
Negra Li, madrinha do pilar Equidade e autonomia também fugiu do roteiro para presentear a plateia majoritariamente feminina. De improviso, à capela, cantou um trecho de Feeling Good, canção de Nina Simone. "Eu precisava falar dela, a Nina Simone, uma mulher que me inspira muito, que me ensinou o que é ter liberdade. Valorizar o que é viver sem medo. Liberdade para ser forte se quiser, ser fraca quando precisar. Ser o que quiser ser. As mulheres que mais me inspiram são as que são livres e não tem forma melhor do que influenciar através do seu exemplo e suas atitudes. Já parou para pensar em como você influencia quem está a sua volta? Eu me vejo influenciando com a minha verdade. Como muitas mulheres, a minha história por si só é de inspiração, de superação. Pois eu persisti com inúmeros desafios." Amanda Oliveira: "Caí com o rosto na água fervendo, mas vi minha vida se transformar pela música" | Amanda Oliveira é vencedora do Prêmio Inspiradoras 2022 | Imagem: Mariana Pekin/UOL |
A vencedora da categoria Igualdade e autonomia, Amanda Oliveira, subiu ao palco com o celular na mão. No momento em que seu nome foi anunciado, ela ligou para a mãe, que acompanhava o evento pela internet. Para continuar com a mãe ali, Negra Li a ajudou com o microfone enquanto Amanda falava à plateia. "Eu queria dizer que os líderes do passado, majoritariamente tocado por homens, criaram os problemas que nós, mulheres, estamos enfrentando hoje. Mas desistir não é e nunca será uma opção. (...) Afinal de contas a menina, a favelada, a situação de extrema pobreza, caí com o rosto dentro da água fervendo, mas eu vi a minha vida se transformar por meio da aula de música, que vinham das salas de aula de um projeto social ministrado por uma professora chamada Valquíria. E minha vida se transformou. Essa menina que hoje se tornou uma mulher obstinada por multiplicar esse impacto que foi feito na minha vida e desde o início, diante dos obstáculos, eu me perguntava: o que mais pode acontecer com uma menina que superou a morte, a desigualdade, a pobreza? (...) Estou feliz, estou entusiasmada. Mãe, do barraco de favela, para o Prêmio Inspiradoras. Estamos juntas! Você é minha inspiração. Obrigada!" Monica Iozzi: 'Eu achava que o comportamento dele era uma prova de amor" | Monica Iozzi anuncia vencedora do Prêmio Inspiradoras | Imagem: Mariana Pekin/UOL |
Antes de apresentar as vencedoras das categorias da causa enfrentamento da violência contra mulheres e meninas, Monica Iozzi pediu licença para contar uma história pessoal. Compartilhou com o público então sua experiência de ter vivido, ainda na adolescência, um relacionamento abusivo. "Eu era muito jovem quando fui vítima de um relacionamento abusivo. Foi um dos meus primeiros namoros e eu só fui começar a pensar em cair fora e pedir ajuda muito tempo depois, quando eu fui agredida fisicamente. Antes disso, eu achava o comportamento dele uma coisa natural, uma espécie de prova de amor. Só me liguei que sofria violência quando ele realmente me bateu. Aí eu percebi o que muitas mulheres sofrem, principalmente quando você é jovem, quando você tem filhos com o seu agressor ou quando você tem uma dependência financeira daquela pessoa. Assim como eu não tinha noção do que eu estava vivendo, muitas meninas e muitas mulheres também não têm." Jaqueline Kunã: "É preciso que o Estado olhe para as mulheres indígenas como humanas" | Jaqueline Kunâ Aranduhá é vencedora do Prêmio Inspiradoras na categoria Acesso à Justiça | Imagem: Marina Pekin/UOL |
A vencedora da categoria Acesso à justiça, Jaqueline Kunã, fez seu agradecimento chamando atenção para a diferença de tratamento que as mulheres indígenas. E pediu que até a lei Maria da Penha seja efetiva também para elas. "Isso aqui é para todas as mulheres que eu carrego comigo, que são múltiplas mulheres, em diversos espaços, diversos, em todos os biomas, em todos os lugares do Brasil, lutando por um mundo mais humano. (...) Nesse país conservador, machista e branco, que é o que tem imperado contra os povos indígenas. É preciso que o estado olhe para as mulheres indígenas como humanas porque o que o estado tem feito é olhar para as mulheres indígenas e simplesmente silenciá-las. E somos nós, na luta cotidianamente para que elas resistam diariamente. Eu estou tremendo, gente. É preciso que a lei Maria da Penha, que é uma conquista de todas as mulheres, é preciso que ela atenda as especificidades das mulheres indígenas. É preciso que nós, que todas e todos e todes aqui ecoem a voz das mulheres indígenas como nós estamos ecoando. (...). Então para todas as mulheres indígenas: isso aqui é para vocês! Obrigada. Anne Cleyanne: "Em primeiro lugar, dona Sônia, que também teve seu corpo violado e abusado" | Anne Cleyanne Alves é vencedora do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Conscientização e Acolhimento | Imagem: Mariana Pekin/UOL |
Anne Cleyanne Alves, vencedora da categoria Conscientização e acolhimento, dedicou a vitória às mulheres de sua família: a mãe, a noiva, a sogra. E, então, replicou o mérito a todas que fazem parte da iniciativa que fundou, a Filhas do Boto Nunca Mais. "Em primeiro lugar, dona Sônia. Mulher preta, periférica, diarista, que também teve seu corpo violado e abusado, mas que me deu a luz e que se sacrificou todos os dias para que eu pudesse estar aqui. Para minha família, minha noiva, minha sogra que está sentada ali, mas, principalmente, gente, hoje, nesse momento, tem meninas do Filhas do Boto Nunca Mais em Porto Velho online nas nossas redes sociais. Hana, nossa presidente, Brenda, nossa vice-presidente e toda a diretoria. São 82 meninas, eu queria muito poder falar o nome de cada uma de vocês, mas vocês sabem que vocês são um banzeiro. Para quem não conhece, para quem não é do norte, um banzeiro é quando o rio faz um movimento forte e ele tira a lama e tira as árvores da beira do rio e isso gera vida, nutre, e isso leva para o resto do bioma da Amazônia. E cada uma das meninas do Filhas do Boto Nunca Mais, vocês são um banzeiro de amor e de solidariedade. Que nós possamos falar em todos os cantos, em todos os lugares, que os corpos de mulheres e meninas pertençam somente a elas. E vai chegar o dia, sim, Pollyanna, que a gente não vai mais precisar trabalhar com isso. Professora Ana, vai chegar o dia que nós vamos comemorar, sim, seja de onde tiver, ou na dimensão que a gente estiver, esse Brasil, gente, realmente está em um novo começo de era. Gratidão, meninas!" Sabrina Parlatore: "Ela estava em tratamento, eu tinha acabado de passar pelo meu" | Anna Gabriella Antici é vencedora do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Inovação em Câncer de Mama | Imagem: Mariana Pekin/UOL |
Ao abrir o envelope e revelar a vencedora da categoria Inovação, do pilar Câncer de mama, Sabrina Parlatore não conteve a emoção. Isso porque se surpreendeu ao descobrir que conhecia a ganhadora. As duas ficaram doentes e se trataram mais ou menos ao mesmo tempo. Se conheceram naquela época. "Oh, meu Deus do céu! E quem vence é Anna Gabriella Antici, do Instituto Protea. Gabi, querida, parabéns! Eu fico muito emocionada porque conhecia a Gabi na casa dela, ela estava ainda em tratamento, eu tinha acabado de passar pelo meu. Então, a gente trocou muitas ideias, muitas informações, muitas experiências. E eu senti uma motivação da Gabi em passar pelo tratamento. Ela estava muito alto astral, muito otimista e já com essa ideia de desenvolver o Protea, que me tocou demais. Quer dizer, uma mulher que tem todos os recursos e teve todos os recursos para se tratar e se cuidar — assim como eu também tive —, estava preocupada com quem não tinha esses recursos. Parabéns a Gabi e ao Protea." Anielle Franco: "Quando encontrei minha irmã com cinco tiros na cabeça, eu podia ter escolhido muitos caminhos" | Anielle Franco agradece à homenagem hors concours do Prêmio Inspiradoras 2022 | Imagem: Mariana Pekin/UOL |
Com voz embargada, Paola anunciou a homenageada da noite: Anielle Franco, que subiu ao palco às gargalhadas de euforia. Ela foi a homenageada por seu trabalho em nome da democracia à frente do Instituto Marielle Franco, que fundou para resguardar a memória da irmã, a vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018. "Vou ser breve, mas queria agradecer a oportunidade de dizer que, desde 2018, quando encontrei minha irmã com cinco tiros na cabeça naquele carro, eu podia ter escolhido muitos caminhos. Caminhos mais fáceis ou não, mas acreditei que podia ajudar a inspirar e protagonizar mulheres negras através e a partir da luta da minha irmã. De que aqueles tiros não seriam em vão. Hoje a gente está com a triste marca de três anos do assassinato de Ágatha Felix, no Rio de Janeiro. Uma menina negra assassinada com tiro de fuzil nas costas. E desde 2018 a gente tem lutado diariamente por isso. A criação do instituto, segurar na mão de mulheres como Carol [Magalhães, vencedora da categoria Informação para vida], que acabou de ganhar, Gabi [Oliveira, vencedora da categoria Influenciadoras], tem sido também inspirador. Uma honra estar aqui, eu não esperava mesmo!" Por um futuro com empatia Anielle encerrou sua fala pedindo um Brasil mais empático daqui para frente. "O que eu queria deixar para a gente, neste ano difícil, é empatia. A gente tem se tornado um país que, por pensarmos diferente, destilamos muito ódio. Fui cuspida na cara com a minha filha de 2 anos no colo quando o atual governo entrou, só porque eu era irmã da Marielle. Fui ameaçada, fui demitida de três escolas — aliás, queria agradecer ao UOL e à Avon. Eu escrevo para o UOL, foi uma parte que me ajudou financeiramente. Isso é importante deixar claro. Mas as pessoas não reconheciam a nossa dor. Não tinham o mínimo de empatia. Não só com a dor da minha mãe, por exemplo, de xingar a filha de inúmeros nomes. Muito obrigada, que esse prêmio, que pessoas que estão aqui se conscientizem que é cada vez mais urgente colocar mulheres negras nesses espaços. Cada vez mais urgente entender que nós podemos, sim, protagonizar nossas vidas e os lugares. Obrigada!" |
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