O Clube de Criação é uma das principais entidades que representam a publicidade no Brasil. Fundado em 1975, tem como função "preservar a criatividade da propaganda brasileira". De dois em dois anos, elege sua diretoria, que fica responsável pela organização de eventos que norteiam todo o mercado criativo nacional. A eleição de 2021, entretanto, foi emblemática. Seus 22 presidentes, até então, foram publicitários brancos, com nomes como Washington Olivetto, Marcello Serpa, Tomás Lorente e José Zaragoza. Agora, pela primeira vez, o clube será comandado por uma chapa formada exclusivamente por profissionais negros, a "Chapa Preta", que venceu a disputa realizada no final de outubro. Por apenas duas vezes, mulheres foram eleitas para a presidência da entidade. Neste próximo mandato, a função caberá à terceira, Joana Mendes, criativa da agência R/GA São Paulo. Gabriela Moura, da agência Soko, será a vice-presidente. O UOL Mídia e Marketing conversou com elas sobre a importância do resultado para a efetiva ampliação da diversidade na publicidade brasileira. UOL Mídia e Marketing: O que significa, para a publicidade, uma chapa formada exclusivamente por profissionais negros vencer uma eleição como a do Clube de Criação?Gabriela Moura: Eu estava lendo sobre a história dos direitos civis das mulheres no Brasil. Algumas conquistas, até meio óbvias, são recentes. Quando você pensa que isso é uma coisa tão clara, que não deveria ser um problema, eu lembro da nossa chapa. Ninguém questionava, até então, o fato de as diretorias do clube serem quase totalmente brancas. A presidência, por exemplo, sempre foi branca. Só tínhamos tido duas mulheres como presidentes até agora. Temos essa dupla conquista, que é incrível, mas ambígua. Ao mesmo tempo em que ela traz muita felicidade, também é um sabor amargo. Esse lugar da vanguarda é desconfortável. Eu não gostaria de estar na vanguarda em 2021. Eu queria ter sido a quinta vice-presidente negra do clube, não a primeira. Isso demonstra como nossa indústria está atrasada. Outros mercados já vêm falando sobre isso há mais tempo. E a gente está aqui, caminhando a passos de bebê. Mas, olhando o copo meio cheio, pelo menos a gente conseguiu. E é um passo muito, muito grande. Gosto de parafrasear a (professora e filósofa feminista) Angela Davis: "Quando a população negra avança, nenhuma outra retrocede". Joana Mendes: Existe também o peso e a responsabilidade de resolvermos muitas coisas, que é muito grande. Nossa vitória nos deixa muito felizes e nos faz entender que todo o trabalho que tivemos com a chapa valeu a pena. Agora sentimos a responsabilidade de resolver alguns problemas que estão no mercado há muitos anos. Há alguns anos, o mercado tem se atentado a questões como diversidade e inclusão. Na prática, o que mudou? Essa vitória é o grande momento disso, pelo menos por enquanto?Gabriela: Existe uma romantização exacerbada quando as empresas falam sobre diversidade. Detesto como a diversidade se tornou mais um produto a ser vendido pelas empresas. Sabe aquela palavra que você repete por cinco minutos até que ela perde o sentido? A diversidade no mercado virou isso. Entendo quem usa esse discurso, mas sou contra quem diz que a diversidade traz lucro. Se há diversidade na sua empresa, você consegue mais inovação. Muitas consultorias usam isso como uma forma de vender esse produto. Pessoas negras e pessoas LGBT têm que ser contratadas (e bem tratadas) porque elas são seres humanos —e não porque elas vão gerar mais lucro. Quero que a gente seja visto como uma engrenagem. Enquanto isso não acontecer, acredito que não estamos avançando tanto quanto deveríamos. Joana: O mercado está respondendo muito lentamente à sociedade civil. Não fossem as pressões externas, como a do Ministério Público do Trabalho, talvez o mercado publicitário nem estivesse falando disso. Espero, sim, que continue avançando. Que as pessoas vejam o que acontece quando negras ou negros chegam no poder. Não chegamos ao topo: espero que seja um começo, que a gente abra espaço para outras pessoas. Uma das formas de combater o racismo é a implementação de práticas antirracistas efetivas. O que o Clube de Criação pode fazer em relação a isso? Quais são os primeiros passos?Gabriela: Não é função do Clube de Criação acabar com o racismo nas agências. A função é fazer pontes. Isso já está acontecendo, desde que recebemos o apoio público de muitas agências de publicidade. Agora, vamos buscar mais gente para ampliar esse relacionamento. Temos ferramentas para ampliar o debate e é isso que vamos fazer. Precisamos ir além da "maquiagem". Não temos nenhum pudor de colocar o dedo na ferida e chamar as pessoas para um debate real, honesto e maduro. Joana: Estamos ajeitando a casa neste momento. É possível que nos próximos três ou quatro meses tentemos entender quais demandas urgentes o clube possui, como automatizar processos com ferramentas de gerenciamento de projetos, que fogem do tema do combate ao racismo. Também precisamos descobrir quais são os potenciais doadores. Somos uma organização não governamental sem fins lucrativos, e nada disso vai funcionar sem essas empresas. A criatividade publicitária pode ajudar a explicar, para o país como um todo, o quanto o Brasil é estruturalmente racista?Gabriela: Acho muito perigoso quando falamos sobre isso. Não é papel da publicidade resolver esses problemas. Somos parte da sociedade civil, da classe trabalhadora dessa indústria. Não podemos ser pedantes a ponto de achar que vamos resolver. A luta antirracista é histórica, de movimentos políticos. Não podemos diminuir isso. Precisamos tomar esse cuidado de não transformar em herói quem está fazendo o mínimo. Ao longo das últimas décadas, a publicidade foi muito autorreferente: o homem branco falando sobre o homem branco para o homem branco. Nossa função aqui é atender, dentro do possível, demandas da sociedade civil para possibilitar uma vida mais igualitária, mais confortável, para as populações a quem, até então, não foi permitido entrar nessa indústria. Joana: Muitas vezes, nos esquecemos de que a publicidade faz parte da sociedade. Precisamos pensar no que ela deveria devolver: fazer e pensar diferente, mostrar que somos um espelho da sociedade. Precisamos entender como podemos ser diferentes nessa história.
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