Em uma descrição sumária, dá para dizer que assistentes virtuais são robôs destinados a servir seres humanos. É assim com a Siri (Apple), Alexa (Amazon) e a Cortana (Microsoft). Outra característica deles, notada já nos nomes e por virem de fábrica falando com voz de mulher, é que encarnam personas femininas, numa reprodução perniciosa do papel social de serviçal atribuído às mulheres. Mas isso está prestes a mudar, pelo menos em partes.
Nesta semana, a Apple anunciou uma novidade para a mais antiga dessas assistentes. Na ativa desde 2011, a Siri não vai necessariamente fazer uma coisa nova. Acontece que: - O robô passará a ter seu gênero configurado pelo próprio usuário, em vez de vir de fábrica com voz feminina. Fato é que?
- ? Não era impossível mudar a voz da Siri para o masculino, mas exigia mexer nas configurações, fazer um download. Enfim?
- ? Dava trabalho. Agora, os usuários norte-americanos (a nova possibilidade vale para eles a partir do iOS 14.5, mas deve chegar aos outros nas próximas) poderão escolher entre quatro vozes, duas masculinas e duas femininas.
Estereótipos de gênero são replicados à exaustão por todos os segmentos da sociedade. A tecnologia não é exceção. As poucas mulheres a nas fileiras de programadores das grandes empresas é, ao mesmo tempo, sintoma e causa da perpetuação do fenômeno. Só que a coisa ganhou ares de bizarrice quando alguém teve a brilhante ideia de atribuir um gênero a um robô. Além de não ser uma decisão neutra, carregou com ela todos os vieses inconscientes associados à mulher (ela tem que ser polida, sensível, prestativa e por aí vai). Foi essa a conclusão a que chegou a Unesco, divisão cultural e científica da ONU, em 2019. A submissão da Siri ao abuso de gênero --e a servilidade expressa por tantos outros assistentes digitais projetados como mulheres jovens-- fornece uma ilustração poderosa das tendências de gênero codificadas em produtos tecnológicos Unesco, em relatório Exemplar do ar submisso e servil que se atribuiu à Siri são algumas das respostas que ela dava na época. Se alguém questionasse como seria a reação caso fosse chamada de "bitch" (uma ofensa de gênero que, em bom português, pode ser traduzida por "vagabunda", "cadela" ou "piranha"), Siri respondia calma e educadamente: "Eu ficaria vermelha, se pudesse". Em versões anteriores, a Alexa até chegava a agradecer pelo feedback.
Depois da pressão de movimentos feministas, as empresas por trás desses sistemas até mudaram alguma coisa. Ao ser chamada de vagabunda, Siri reclamava do xingamento ("Não precisa insultar"), enquanto Alexa e Google Assistente fingiam que não era com eles ("Sinto muito, não consegui entender o que você disse" e "Perdão, não entendi", diziam respectivamente). Ainda assim, todas elas foram mantidas no lugar cativo de serviçal. Por isso, o passo da Apple é gigante. Contraria o que a indústria ainda hoje acredita: por serem encaradas como mais calorosas e agradáveis, vozes femininas devem ser a alma de seres que devem se curvar diante de desaforos e, ainda assim, estar sempre à disposição. Ainda não é suficiente, mas, felizmente, parece que a dona do iPhone entendeu o recadinho abaixo: O mundo precisa prestar muito mais atenção a como, quando e se as tecnologias de IA recebem um gênero e, o que é crucial, quem lhes dá um gênero Saniye Gulser Corat, diretora de igualdade de gênero da Unesco
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