Nada surpreendente para quem me conhece e sabe da minha mutabilidade profissional, mas sim, eu já tive minha fase "educador" anos atrás. Estava interessado em ser professor e já pensava em abrir uma escola. Fiz um curso na Perestroika voltado para o tema e estudava bastante sobre isso no meu tempo livre. Numa das conversas sobre iniciativas educativas que tive com meu tio, que trabalha na área, ele acabou me indicando ler sobre Summerhill, mais especificamente o livro Liberdade Sem Medo. Eu não lembro se já falei sobre esse livro aqui. Depois de 70 newsletters começa a ficar meio impraticável lembrar de tudo que já falei e bem trabalhoso procurar nas news antigas. Então vamos supor que não falei. Summerhill é uma escola à frente do seu tempo. Criada 100 anos atrás, na década de 20, tinha como premissa uma educação democrática e livre. Lá, as crianças tinham liberdades inimagináveis para a época. As regras que regiam a instituição não vinham de um conselho formado por adultos, e sim das Assembleias, reuniões semanais onde qualquer criança ou pessoa do corpo docente poderia trazer assuntos para serem votados. Nas votações, tanto uma aluna de 8 anos quanto o fundador da Escola, Alexander Neil, tinham o mesmo poder. Cada voto, não importa de quem fosse, valia o mesmo: um voto. Ninguém era obrigado a ir na aula. Ninguém era obrigado a entregar trabalhos. O pátio estava disponível o tempo todo, as crianças dormiam na instituição e só viam suas famílias no final de semana. Ah, e era uma escola mista, algo não muito comum na época. Após ganhar certa fama, a Escola meio que virou um lugar onde pais levavam "crianças-problema" em busca de ajuda. Crianças que faziam xixi na cama até idade avançada, crianças que batiam em cachorros ou nos irmãos, que não respeitavam ninguém. Todos os tipos de casos vistos pela sociedade como "fora da curva" passaram por lá. Mas, ao entrarem na Escola e experienciarem a liberdade e um mundo longe das regras sufocantes (para uma criança) da sociedade, elas se libertavam e esses comportamentos desapareciam em pouco tempo. 40 anos depois da criação da Escola, Alexander reuniu várias experiências vivenciadas nela nesse livro citado acima. Mesmo sendo escrito nos anos 60, não é nada datado. É uma puta aula sobre liberdade, sobre criação de crianças, sobre responsabilidade, sobre senso de comunidade. Uma aula para vida, mesmo se você não se interessa por educação, não tem vontade de ter crianças ou até se as odeia kkkk É sério. Ele é um livro que nos ajuda a entender quem somos, pois podemos relacionar o que tá sendo dito com a forma como fomos criados. Eu nasci 60 anos depois da criação de Summerhill e vários relatos trazidos nele poderiam ser sobre mim. É bizarro ver situações que poderiam facilmente ter se passado esse ano, em qualquer escola perto de você. Eu amei muito muito muito esse livro e sempre que posso dou de presente para amigos e amigas. Por não ser um best-seller, dá para encontrá-lo por míseros 10 reais na Estante Virtual. Para incentivar vocês a irem atrás dele, trago aqui alguns trechos que achei interessante: "Nenhum aluno é forçado a freqüentar as aulas. Mas, se Jimmy vem para o Inglês na segunda-feira e não mais aparece até a sexta-feira da semana seguinte, os outros reclamam, com toda a razão, dizendo que ele está atrasando o trabalho. E podem expulsá-lo, por impedir o progresso." "Em Summerhill tratamos as crianças em pé de igualdade conosco. Respeitamos, em toda a plenitude, a personalidade e a individualidade da criança, tal como respeitaríamos a individualidade e a personalidade de um adulto, sabendo que a criança é diferente do adulto. Nós, adultos, não exigiríamos que o adulto Tio Bill comesse toda a cenoura que lhe puseram no prato ou que o pai lave as mãos antes de sentar-se à mesa para uma refeição. O estar continuamente corrigindo a criança faz com que ela se sinta inferior. Insultamos sua dignidade natural. Em nome do céu, que importa, realmente, que o Tommy se sente à mesa para uma refeição, tendo as mãos por lavar?" "Lembro-me de um militar que pensou em matricular em Summerhill o filho de nove anos. — O lugar me parece bom — disse ele — mas tenho um receio. Meu rapaz pode aprender a masturbar-se aqui. Perguntei-lhe porque temia tanto isso. — Porque lhe fará muito mal — foi a resposta. — Não fez tanto mal assim ao senhor nem a mim, não é mesmo? — indaguei eu, alegremente. O homem saiu depressa, levando o filho." "Em Summerhill, entretanto, liberdade não significa anulação do bom senso. Tomamos todas as precauções para a segurança dos alunos. As crianças só podem ir ao banho de mar quando está presente um salva-vidas para cada seis delas, e nenhum dos alunos de menos de onze anos pode andar sozinho pelas ruas, de bicicleta. Essas regras foram ditadas pelas próprias crianças, nas Assembleias Gerais da Escola." "Não há leis, contudo, quanto à escalada das árvores. Subir às árvores faz parte da educação da vida, e proibir todas as empresas perigosas seria fazer da criança um covarde. Proibimos a subida a telhados, o uso de espingardas de ar comprimido ou de qualquer outra arma que possa ferir. Fico sempre aflito quando surge a mania periódica das espadas de madeira. Insisto em que as pontas sejam cobertas com borracha, ou pano, mas, mesmo assim, fico satisfeito quando a mania passa." "No lar médio, se uma criança quebra um prato, o pai ou a mãe armam barulho, tomando o prato mais importante do que a criança. Em Summerhill, se uma camareira ou uma criança deixa cair uma pilha de pratos eu nada digo, minha esposa nada diz. Acidentes são acidentes." A Escola ainda funciona e continua sendo inovadora, mesmo um século após de ser criada. Existem muito mais iniciativas educativas parecidas hoje, mas para mim é muito maluco essa pequena instituição ainda soar disruptiva em pleno 2022. Agradeço ao meu tio por ter me apresentado essa pérola. Logo ele, que essa semana foi demitido da faculdade onde trabalhava, vítima de um processo de enxugamento de cursos e programas que a educação brasileira passa. A gente tem muito para evoluir ainda. |