Existe uma janela cognitiva que se abre lá pelos 9, 10 anos de idade, em que você deixa de focar sua atenção em conteúdo específico para crianças, e vira seus olhos para o vasto, confuso e malicioso mundo do conteúdo adulto. E até lá seus 14-15 anos, quando nossa busca desesperada por pertencimento nos faz gostar de tudo que nossos amigos gostam, flutuamos por um labirinto intricado sendo impactados por qualquer coisa que nos inspire aventura, perigo, sexo ou rock'n'roll (as drogas vêm um pouco depois). Foi com essa janela aberta que eu fui ao cinema para assistir Dick Tracy, um filme baseado nos quadrinhos lançado em 1990 que tentava emplacar o mesmo sucesso obtido pelo Batman de Tim Burton, no ano anterior. Dick Tracy não chegou nem perto do concorrente, mesmo com uma produção milionária e seu elenco estelar: Warren Beatty, Al Pacino, Dustin Hoffman e Madonna, entre outros. Não importa. O eu-moleque saiu de lá enlouquecido querendo comprar qualquer revista na banca que mencionasse o filme, e foi assim que eu comprei meu primeiro CD (na verdade, troquei um vale-fita da Hi-Fi): ‘I'm Breathless’, a trilha do filme cantada toda pela própria Madonna, e de onde saiu um de seus maiores hits. Eu não sabia quase nada sobre a cantora. Até esse ponto, ela já tinha rolado no chão vestida de noiva no palco e já tinha beijado santo negro, mas a MTV recém tinha desembarcado no Brasil, suas polêmicas só podiam aparecer tarde da noite do Fantástico, e eu pirralho mal conseguia compreender qual era o zumzumzum em torno dela. Mesmo assim fiquei obsessivo. Queria ver Madonna de qualquer jeito, e soube que ela se apresentaria no Oscar de 1991, com a música ‘Sooner or Later', que viria a roubar o prêmio de melhor canção das mãos de Jon Bonjovi. Se você nunca viu a apresentação dela, veja porque é uma Madonna-raiz, cantando ao vivo, emulando Marilyn. Vale a pena. Enfim, todo esse prelúdio para dizer que essa apresentação mexeu comigo de um jeito que 30 anos - e muitas polêmicas da Madonna - depois, eu mal sei dela, mas virei seguidor assíduo da premiação. Sim, é muito cafona e cansativo. Sim, já perdeu muito do glamour. Sim, a academia é racista e machista, etc. etc. Mas existe em mim uma curiosidade mórbida em acompanhar os artistas ao longo dos anos, ver como eles acumulam fama, dinheiro e rugas (ou aplicações de botox), e como suas estrelas acendem e apagam ao sabor dos tempos. Gosto de torcer fervorosamente por bons filmes e performances, de ver a lista dos que morreram nos últimos anos, as aberturas cheias de piadas constrangedoras, tudo. Esse domingo tem mais uma cerimônia do Oscar, em um ano tão esquisito. A pandemia fez o número de filmes lançados nos Estados Unidos em 2020 cair pela metade em relação ao ano anterior, e voltar para o ritmo de 2001. Muitos lançamentos foram adiados. Muitos foram direto para o streaming. A bilheteria dos cinemas teve queda global de 72% de arrecadação e 76% e público. E nesse cenário, a festa que sempre acontece entre fevereiro e março veio para o fim de abril, além de ser apresentada em diversos lugares do mundo, bem fragmentada. Mas se tem tanta mudança no Oscar desse ano, acho que a maior delas está do lado de cá, no público. A pandemia que nos trancou em casa nos fez mudar nossa relação com cinema. Nunca ficamos tanto tempo colados no sofá, com tanto tempo disponível e tantas opções de filmes e séries. Nunca tivemos tantos serviços de streaming oferecendo novidades diárias. Nunca tivemos tanta liberdade para começar a ver um filme e parar no meio para (talvez) ver depois. Nunca tivemos tanta distração. Filmes, agora, para ter sucesso precisam lutar muito pela nossa atenção. Senão, trocamos com a facilidade de quem passa pelos Stories. Então, penso, fazer cinema hoje virou um trabalho hercúleo. Não adianta ter bilhões de verba, tecnologia de ponta, nem o elenco mais estrelado. Isso reflete diretamente no Oscar. Nas indicações dos 8 que concorrem a melhor filme, pelo menos 4 podem ser considerados ‘cinema alternativo', e com chances reais de vencer. Boas histórias ganhando espaço de grandes produções. Também cresce a importância de categorias que antes eram absolutamente menosprezadas, como os documentários. O advento do streaming fez o acesso a esse gênero crescer, o que aumentou muito o público e a injeção de verbas. Eu confesso que antes não sabia sequer os nomes dos indicados, e nos últimos anos não só já tinha visto alguns da lista como me sentia inteirado suficiente para ter torcida. A premiação desse ano traz ainda algumas boas notícias como a indicação inédita de duas mulheres na categoria melhor diretor (Emerald Fennell, te amo!). Tem quem diga que os filmes desse ano estão muito bad vibes num momento em que precisamos de coisas mais leves e inspiradoras. Mas eu acho que temos uma seleção bem interessante, que reflete bem o momento que vivemos. Luto, desesperança, racismo, misoginia, languishing, está tudo lá. E se você chegou até aqui, agora vai as minhas dicas-que-ninguém-pediu: os filmes que eu acho que você tem que ver, para chegar na cerimônia de domingo com toda gala, são: Meu pai - Anthony Hopkins deveria ganhar o prêmio 30 anos depois do Hannibal Se quiser assistir o Oscar junto comigo, me segue lá no Twitter. Muitos dos filmes indicados estão disponíveis na Netflix. Dá um tempo nas séries aí e se joga. Curiosidades irrelevantes sobre essa edição do Oscar. Se você não é de filme mas é de série: estreou na semana passada na HBO ‘Mare from Easttown', com a magnífica Kate Winslet, que está um soco na cara de boa. Na superfície, parece uma daquelas séries do tipo ‘que matou?', mas já no primeiro episódio dá para ver que tem muita coisa escondida nas profundidades. Um episódio por semana para deixar a gente breathless. E se você quer ficar longe de filmes e séries, não esquece que toda semana temos um guia repleto de opções para você se divertir sem sair de casa. Tem música, festa, show, teatro, comprinhas, comidinhas e muito mais, tudo com apoio da Jack Apple. Divirta-se, e fique em casa! Comentários, elogios, sugestões, críticas e conversas aleatórias, mande um email para nós: hello@chickenorpasta.com.br Se você gostou da nossa newsletter Chicken Wings, compartilhe com os amigos! |
sexta-feira, 23 de abril de 2021
Cinema em casa
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