Um livro gigante desceu à Terra. Surgira sem aviso, brotando na estratosfera terrestre e mergulhando lentamente em direção ao planeta. Era um volume gigantesco, com uma capa marrom sem inscrições ou gravuras. Parou a 100 metros do chão, na região metropolitana do Cairo, levitando sob o olhar curioso e amedrontado de toda a humanidade. Passado um dia do "pouso", a capa abriu-se sozinha, revelando o conteúdo da primeira página. Passado mais um dia, essa página também se mexeu, expondo a segunda. Assim começou um ritual que se seguiu por meses. Todo dia a humanidade descobria uma nova página. O livro possuía mais de 400 metros de altura, tornando perfeitamente fácil para qualquer pessoa, mesmo em um raio de quilômetros, ler seu conteúdo. Para ainda mais incredulidade da classe científica, o idioma das páginas estava sempre na língua em que o observador falava. Quando um brasileiro enxergava uma página do livro, lia o texto em português. Para um russo, o texto se apresentava em russo. O conteúdo do livro foi sendo descoberto com o passar dos dias. Ele trazia a história da Terra, narrada por algo ou alguém onisciente, que contava tudo, detalhe por detalhe, como se tivesse presenciado cada minuto existente no planeta desde seu nascimento. O livro narrou o surgimento da vida, narrou o início e o fim dos grandes dinossauros, narrou como as primeiras civilizações conquistaram outras, narrou a evolução da sociedade. Todos acontecimentos minimamente relevantes para a história do planeta e a vida humana estavam contemplados de forma didática. Como essa história não é curta, o livro também não entrava na categoria de leitura dinâmica. Ele levava bastante tempo para avançar na história a fim de explicar tudo sem ser superficial, e semanas se passavam para apenas um acontecimento - por exemplo, a aniquilação do império Asteca pelos espanhóis - fosse narrado. Saber o que a página do dia trazia de informação virou rotina nos quatro cantos do mundo. Canais de TV e sites transmitiam ao vivo as páginas virando, e elas prontamente ganhavam as páginas da imprensa e perfis em redes sociais. Porém, paciência não é uma característica muito humana. Descobrir o que havia nas outras páginas do livro foi o que motivou a construção de guindastes especiais, capazes de atuar em altíssima altura e passar suas páginas mais rapidamente. A tentativa se mostrou um desperdício de dinheiro. O livro era impenetrável e imperturbável, e a sua leitura seguiria o ritmo "natural". Mesmo assim, não precisava ser muito inteligente para entender o que as páginas seguintes revelariam. A narrativa estava se mostrando verdadeira, precisa e imparcial, e isso trouxe medo para governos, instituições tradicionais e pessoas importantes com passados sombrios. Como a sociedade reagiria com a história real sendo exposta em um livro de 400 metros de altura para todo o planeta? Somado ao temor pelo futuro, estavam os fatos que o livro já havia revelado. Acontecimentos trazidos por ele derrubavam mitos, lendas e tradições há muito enraizadas na sociedade. Religiões entraram em crise, a história de vários países precisou ser corrigida, ídolos do passado perdiam espaço todos os meses. Tudo isso foi combustível para o surgimento de movimentos contrários à história pregada no livro. Pessoas que não gostaram de ver suas crenças desafiadas se juntaram para criar escolas, faculdades e até cidades comprometidas com a "história anterior", lugares que viviam os ensinamentos das histórias que conheciam, e não nas que o grande livro trazia. A dádiva da informação que o livro trazia foi muito celebrada pelas pessoas, mas não teve força o suficiente para conter os movimentos anti-leitura, que se organizaram para impedir o livre acesso ao seu conteúdo alegando perigo pela revelação de momentos confidenciais que poderiam gerar conflitos entre nações e perturbar a paz mundial. Após 1 ano de muita pressão política e articulações entre governos de vários países, os líderes mundiais ouviram os anseios desses movimentos e, mesmo sob intenso protesto da grande maioria da sociedade, restringiram o acesso ao livro. O novo comitê responsável por seu conteúdo organizou a saída da imprensa do Cairo, a interrupção das transmissões online e a construção de uma grande estrutura ao redor do livro, para impedir que pessoas o lessem à distância. No dia do banimento, o livro já estava descrevendo fatos que dariam início à Primeira Guerra Mundial, mas o que veio depois disso somente um seleto grupo de pessoas pode ler. Após mais alguns anos, o livro chegou ao fim. Quando a última página foi virada, o livro recomeçou. Agora, cada página nova contava a história do dia anterior. O livro parecia ser escrito diariamente, narrando a história enquanto ela acontecia. Essas novas páginas, somadas às páginas finais, estavam todas descritas nos relatórios que chegaram à mesa do comitê. Depois de conhecer tudo sobre a humanidade pelas páginas do livro, esse comitê chegou à decisão de que era melhor para o mundo continuar vivendo as histórias que as pessoas já conheciam e, numa votação unânime, decidiu manter o banimento do livro. O grande livro que caiu do céu não tinha nada a ver com isso e continuou folheando suas páginas e contando a história que presenciava. A história toda estava ali, descrita tal qual havia acontecido, mas sem ninguém para ler. Espero que gostem dos links. - Copo 1/2 Cheio, um podcast feito pra quem quer ouvir boas notícias e ver caminhos mais positivos para lidarmos com os problemas do mundo. - É um clichê mas que não custa ser reforçado: perfeição não existe e pode impedir que boas ideias ganhem vida. - Seguindo nessa mesma linha de se desapegar da imperfeição, por que não abraçar logo o irracional? - James Clear é um estudioso sobre hábitos e já falei dele bastante por aqui. De tempos em tempos paro pra ouvir ele falar pra ver o que novo ele traz e o que isso desperta em mim, e acabei ouvindo essa entrevista que achei muito massa e trouxe vários insights pra minha vida. - Será que precisamos redefinir nossa visão sobre equilíbrio em prol da nossa sanidade? Amei muito esse texto. - Qual é a melhor hora pra você dormir? - Projetinho legal e necessário para repensarmos nossa linguagem: Dicionário Consciente. - E se quiser repensar sua conexão com a leitura, o Leitura de Bolso propõe um novo formato: pequenos trechos de um livro todo dia no seu WhatsApp. "You are under no obligation to remain the same person you were a year ago, a month ago, or even a day ago. You are here to create yourself, continuously." - Richard Feynman <3 |
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