Ao longo de 2019, políticos e empresas de tecnologia se estranharam tanto, que faíscas geradas pelos embates adentrarão 2020 e levarão um bom tempo para desaparecer. O que rolou?Não é de hoje que os rumos da tecnologia são ditados por decisões políticas. Afinal, que melhor maneira os poderosos têm de perpetuar seu poder do que moldando ferramentas cruciais para disseminar informação? Mas parece inevitável que isso ocorra com cada vez mais frequência, uma vez que empresas de tecnologia estão mais e naus presentes em cada canto de nossas vidas. E isso, em alguns momentos, colide com a atuação do Estado ou se choca com seus interesses econômicos. Antes de prosseguir, aviso que este texto não inclui as políticas públicas que por algum motivo tocam a tecnologia. Ou seja, você não vai encontrar aqui as empresas de tecnologia incluídas no plano de privatização do governo Jair Bolsonaro ou o caso Anatel x Fox, que desencadeou uma revisão do modelo de TV paga no país, o julgamento do Marco Civil da Internet no STF e a reformulação no marco de telecomunicações). Este texto trará, sim, de quando a visão de mundo de uma autoridade política se choca com o funcionamento de alguma plataforma. Com o ano no fim, já é possível olhar para trás e notar como as peças estavam dispostas no tabuleiro e em torno de quais aspectos os principais embates giraram. Para facilitar, dividi as tretas em cinco pilares. Vamos lá. 1) EUA x China a) 5G: a guerra de trincheira Os dois países dão trombadas há tempos, mas só iniciaram uma guerra comercial em 2017. De lá para cá, a imposição de sobretaxas passou a englobar a tecnologia, porque: b) TikTok: o novo front Neste ano, o enrosco entre os dois países ganhou um novo alvo: o TikTok. O aplicativo é o maior hit do ano, sucesso entre jovens e adolescentes, mas: - Entrou na mira do Exército dos EUA, que o usava para recrutar novos soldados, mas levou uma reprimenda de um senador. O exército passou a orientar cadetes a desinstalar o app. Também...
- ... a Marinha baniu o TikTok dos celulares de oficiais, que, caso descumpram a ordem, não poderão acessar a intranet. Isso está ocorrendo porque...
- ... o Pentágono acredita que o TikTok é uma ameaça à cibersegurança e coloca os dados de seus oficiais em risco. Já a...
- ... administração federal dos EUA abriu uma revisão da aquisição que originou o TikTok (a chinesa Bytedance comprou a americana Musical.Ly) após parlamentares levantarem indícios de que o app censura discursos contrários ao regime chinês, como as postagens das manifestações sobre Hong Kong.
2) Brasil: o flerte com a OCDE e a canelada na Globo Por aqui, o ano foi marcado, por um lado, pelas evidentes caneladas do presidente Jair Bolsonaro e, por outro, pelas mudanças quase imperceptíveis na forma como o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) encarava condutas de empresas de tecnologia. Tudo ficou mais evidente quando: - Em uma live, Bolsonaro ameaçou dificultar a renovação de concessão pública da TV Globo. Agora...
- ... o presidente elaborou um projeto para endurecer o processo, ao exigir que as empresas paguem todos os impostos devidos para pedir a renovação. Hoje, basta estarem quites com a Receita Federal (se estiverem devendo, podem parcelar o débito). Por outro lado...
- ... o MJSP destinou boa parte de seus esforços a investigar deslizes de empresas de tecnologia, como Google e Facebook. Isso representa uma guinada, já que a pasta por trás dos inquéritos é a que defende o consumidor e...
- ... os consumidores destas companhias não são necessariamente os usuários, como eu ou você, mas as empresas que compram anúncios direcionados. Só que...
- ... O ministério passou a considerar que, como os usuários cedem seus dados em troca do acesso, há uma relação de consumo. E, quando há um vazamento de dados pessoais, por exemplo, os usuários podem reclamar seus direitos. Essa mudança vem na esteira da tentativa do Brasil...
- ... de ser aceito na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a "liga dos países ricos", já que a entidade exige que os membros cumpram uma série de exigências, tal qual tratar desvios das Big Tech como ofensas ao direito do consumidor.
3) Big Tech: a paciência acabou Neste ano, cresceu a percepção de que as empresas de tecnologia ficaram grandes demais. É claro que a corrida presidencial dos EUA ajudou. A extensão do poder de influência de plataformas como as de Google e Facebook fez o resto do trabalho. Percebemos que o clima azedou porque: 4) Facebook: mentiras políticas me interessam Não satisfeita com todos os problemas que já possui, a maior rede social do mundo entrou em uma polêmica por defender a liberdade de expressão. Não haveria problema se fossem, por exemplo, ativistas denunciando um governo corrupto, mas os beneficiários são: 5) Trump x redes sociais Donald Trump, presidente dos EUA, simplesmente não entende. Por que posts com opiniões tão parecidas com as suas ou de seus seguidores estão sendo extirpados das redes sociais? Ele acha que é censura, mas: - As redes sociais têm expulsado supremacistas que espalham discurso de ódio e, por acaso, vêm a ser apoiadores de Trump. O republicano...
- ... Já reclamou por perder seguidores, o que foi explicado pelo CEO do Twitter. Acontece que o site faz regularmente uma limpa nas contas falsas. Há também os excluídos pelo discurso de ódio, como...
- ... Alex Jones, dono da página Infowars, que foi expulso em maio por ser o responsável pelo maior celeiro de teorias da conspiração da internet. A despeito de o conteúdo produzido ser verdade ou não, Trump achou a atitude de Facebook e Twitter muito extremada, um "golpe na liberdade de expressão".
Por que é importante?Todas as disputas acima mostram como a tecnologia — e as empresas por trás dessas ferramentas — e o poder público protagonizam hoje um jogo de ação e reação jamais visto. A tensão entre esses dois jogadores é tão alta quanto a que ocorre entre dois países hegemônicos. Ainda que EUA e China tenham crescido distantes um do outro, à medida que seu poder se estende geograficamente, eles não veem outro destino a não ser brigar pelo mesmo espaço vital. E o espaço vital, no caso das brigas deste ano, é a internet. Quem domina suas possibilidades, seu funcionamento ou seu horizonte de desenvolvimento praticamente desenha os contornos do futuro. Algumas pessoas perceberam isso, jogaram fora os subterfúgios e atacaram exatamente esta questão: qual a internet que queremos? Tim Berners-Lee, o pai da web (o WWW), notou isso e propôs um pacto para governos e empresas se unirem e expandir ao máximo a internet, tornando-a acessível, não invasiva e um instrumento para promover os direitos humanos. Não é bem assim, mas está quase láOutro a notar isso foi Vladimir Putin. O plano do presidente da Rússia, porém, passa longe desse negócio de união. Em dezembro, ele viu sua ideia de criar uma internet russa dar certo. A "desplugada" Runet é uma experiência nova. Mas nada de bom pode surgir dela. Seguindo os passos de China e Irã, que bloqueiam conteúdo proibido, a Rússia deu o piparote mais significativo para desestabilizar o frágil equilíbrio da internet. Pode parecer radical, mas repartir uma gigante da tecnologia é aventada como solução para as várias investigações antitruste abertas nos EUA. Ainda que os efeitos da repartição sejam enormes, afinal, ela pode acabar com a competitividade que fez essas companhias conectarem boa parte do mundo, seu efeito parece suave perto das consequências de sacar um país da internet. A China até conseguiu construir seu poderio econômico dentro de sua internet murada. Mas economia é tudo? Pense na cultura que deixa de fluir quando a infovia que poderia conduzi-la simplesmente é fechada ou cobra um pedágio alto demais. Se 2019 insinuou que as rusgas entre política e tecnologia vieram para ficar, 2020 e todos os anos que virão podem mostrar se esses embates culminarão em uma sociedade melhor ou se levarão nossas organizações diretamente para o futuro em que uma Idade Média |
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