O psicanalista e colunista de Tilt, Christian Dunker, escreveu nesta semana sobre delírio. E o pano de fundo foi o bolsonarista que se agarrou ao para-brisa de um caminhão e rodou alguns quilômetros dessa maneira, correndo, inclusive, risco de morrer. Bem, antes de tudo, para deixar bem claro, Dunker não está fazendo um diagnóstico clínico do bolsonarista, mas o colunista usa o caso para falar sobre as formações delirantes "artificiais", que são aquelas promovidas pelo estado de adesão identificatória a grupos, instituições e massas humanas. O modelo aqui é um quadro historicamente conhecido como folie a deux (loucura a dois), onde um indivíduo, geralmente colocado em posição de autoridade, exerce sua ascendência sobre outros induzindo-os a partilhar, gradualmente, as ideias de seu próprio delírio. No caso do bolsonarista do caminhão, a cura para o delírio é rápida e eficaz. Basta afastar o sujeito da pessoa ou da fonte de irradiação delirante. Mas, o que vem depois disso? Segundo Dunker, nos primeiros momentos da separação e da queda, o delírio tende a aumentar seu poder de convicção, justamente porque ele é formado e fortalecido pela negação conjunta. O que vem a seguir pode apresentar complicações. Nas seitas do fim do mundo, quando o apocalipse previsto para determinada data não acontece, a dissonância cognitiva entre crenças e realidade é frequentemente corrigida por uma crença auxiliar, por exemplo: o fim do mundo não aconteceu justamente porque nós conseguimos mobilizar as pessoas e a pureza das suas orações, mudaram o curso do que estava previsto. O ensaio geral do golpe, anunciado por Bolsonaro nos últimos meses, criava assim as condições delirantes para sua própria realização como um golpe... rodoviário. Paralisar o sistema logístico do Brasil poderia criar a confusão necessária para que o apocalipse se tornasse possível, sem que ao mesmo tempo percebêssemos que somos nós mesmos que estamos criando a tal realidade paralela. Mas a realidade aparece como um caminhão mais forte do que isso, levando consigo o heroísmo por água abaixo. Aliás, a realidade é muito chata e desinteressante, e ela segue seu fluxo sem empolgar muita gente. Por isso, a realidade paralela não é só um problema de distorção cognitiva, ignorância ou lapso de informação, mas uma fonte permanente de satisfação. Ela intensifica e engrandece o simples encamisado amarelo, investindo-o de superpoderes. Ao final, nosso modesto entregador de pizza se sentirá participando de uma epopeia mundial, na qual ele tem seu papel de protagonista, derrotando o vilão, as forças trevosas e sua organização secreta. Gradualmente virá o cansaço, pois não é fácil se apoiar tanto tempo no parachoque de contrarrealidade. A ausência de palco e plateia, as contas da vida, sem falar em mulher e filhos esperando o motorista chegar em casa, farão a sua parte. Poderemos entender então que não precisamos ficar de cara contra o vidro do celular ou do caminhão, agarrados em nossas crenças, porque elas se tornarão dispensáveis. Nisso a realidade, ainda que dura e complexa, com toda sua força se tornará um pouco mais interessante. Daí, em vez de sermos atropelados por esta realidade, que tanto negamos, poderemos enxergar o longo caminho que temos pela frente. Ele não é só um caminho, mas um verdadeiro caminhão. ******** Quer um jeito prático de se informar? Veja como receber notícias de Tilt em seu WhatsApp ou no Telegram! |
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